Por Marcel de Mattos, Priscila Silveira, Raul Marques Rodrigues, Rosalia Lempk Constantin
Certamente você já presenciou uma crise convulsiva ou ouviu falar de alguém sofrendo de epilepsia e convulsões. Nosso cérebro funciona por impulsos elétricos que passam de neurônio a neurônio e, assim, redes de neurônios especializadas nas mais variadas funções corporais são ativadas.
Porém, na epilepsia, um grupo de neurônios – o foco convulsivo – tem sua atividade elétrica modificada e dispara impulsos frequentes que podem atingir outras áreas do cérebro – quadro que então chamamos de crise generalizada. Dependendo das áreas atingidas, o paciente pode apresentar sintomas como breves lapsos de atenção até perda da consciência, além do surgimento dos característicos espasmos musculares.
Existem vários fármacos disponíveis no mercado que são utilizados para controlar as crises, porém as terapias medicamentosas atuais são eficazes somente em cerca de 70% dos casos. Isto significa que até 30% dos casos são refratários, não respondendo ao tratamento. Entre estes casos está a síndrome de Dravet.
A síndrome de Dravet é considerada rara, causada na maioria dos casos por uma mutação genética, e afeta mais o sexo masculino. Aproximadamente 12% dos pacientes manifestam os sintomas de convulsão até os três anos de idade. As crianças diagnosticadas apresentam estagnação e regressão do desenvolvimento motor, cognitivo, comportamental – hiperatividade e, menos frequentemente, traços de autismo – e comprometimento das habilidades linguísticas. Essas consequências se devem às frequentes descargas elétricas anormais, que a longo prazo acabam modificando o funcionamento dos neurônios e podem causar sua morte.
A cannabis medicinal é o gênero de plantas que dá origem à erva conhecida como maconha, a qual é uma droga muito utilizada com fins recreativos no mundo inteiro. Apesar das propriedades medicinais de espécies de Cannabis serem conhecidas há séculos, os últimos anos foram marcados por um ressurgimento do interesse nos compostos da planta para fins terapêuticos. Você sabia que essa planta pode ser usada para preparar medicamentos e melhorar a vida de milhares de crianças ao redor do mundo?
O gênero cannabis medicinal possui diversas substâncias únicas na sua composição, algumas das quais são conhecidas como canabinoides e atuam em um sistema de comunicação molecular próprio no nosso cérebro. Na planta, as principais substâncias são o canabidiol (CBD) e o tetraidrocanabinol (THC) – componente psicoativo responsável pelas alterações sensoriais induzidas pelo consumo de maconha.
Estudos recentes têm gerado evidências quanto ao potencial anticonvulsivante do canabidiol. O seu mecanismo de ação não é completamente conhecido, porém especula-se que ele atue em receptores e canais celulares, reduzindo a excitabilidade e a transmissão neuronal. Existem diversas vias pelas quais ele pode ser administrado, sendo a inalatória a mais eficiente, embora a via oral também possa ser usada. O canabidiol é metabolizado majoritariamente pelo fígado e, devido às suas propriedades lipofílicas, é distribuído rapidamente para o cérebro.
Durante o processo de produção do canabidiol, o THC é eliminado. Portanto, utilizar um medicamento à base de canabidiol é diferente de fumar um cigarro de maconha e, consequentemente, os pacientes não sentem os efeitos sensoriais característicos do consumo de maconha, como as alucinações. Isso acontece porque o canabidiol não ativa os mesmos receptores canabinoides que o THC.
Nos Estados Unidos, o uso de canabidiol é legalizado como suplemento há anos. No Brasil, a história é outra. Enquanto uma companhia farmacêutica anuncia o desenvolvimento e a produção nacional de um medicamento seguro e caríssimo, algumas famílias conseguem recurso judicial para importação ou produção e utilização do óleo produzido a partir da planta.
Dentre as histórias envolvendo a cannabis medicinal medicinal, há a de Charlotte Figi, portadora da síndrome de Dravet. Sua tia fotógrafa produziu a série “Face of cannabis medicinal”, com crianças tratadas com a planta, as quais apresentavam síndromes epilépticas graves. As crianças não respondiam bem aos tratamentos convencionais e encontraram na maconha medicinal uma alternativa para controlar os sintomas.
Já no Brasil, podemos citar o caso de Anny Fischer, de 5 anos, portadora de epilepsia grave. Anny realiza tratamento com óleo de Cannabis rico em canabidiol, importado dos Estados Unidos. O óleo já chegou a ser bloqueado na alfândega pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e foi preciso uma liminar judicial para que continuassem a trazê-lo legalmente. Anny apresentou uma boa resposta ao tratamento e sua família continuou a luta para estimular novas discussões no Brasil sobre o potencial terapêutico da maconha e a reclassificação desta pela ANVISA.
Em um ensaio clínico publicado recentemente com portadores de síndrome de Dravet refratários a vários medicamentos, um grupo recebeu uma solução de canabidiol e outro foi tratado com placebo (intervenção sem efeito terapêutico). Os resultados mostraram que no grupo que recebeu canabidiol 43% dos pacientes tiveram suas crises convulsivas reduzidas pela metade, contra 27% do grupo placebo. As evidências disponíveis indicam que o canabidiol é seguro e bem tolerado pelo organismo, apesar de não existirem estudos de longo prazo e sobre possíveis interações com outros fármacos.
De qualquer modo, o canabidiol parece ser uma terapia promissora com grande impacto para as famílias que sofrem com crises convulsivas de difícil tratamento. É preciso combater a desinformação sobre o tema para que a falsa associação com o uso abusivo de maconha não impeça o andamento das pesquisas necessárias na área.
Fontes:
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/epi.12631
https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1611618
http://rvq.sbq.org.br/imagebank/pdf/MatosNoPrelo.pdf